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e meio.

sábado, janeiro 26, 2002

Um Segundo - by BillySky

com o patrocínio de GPF, o blog que faz questão de fazer frases incompletas por causa do.

E então, com sono, olhou para o lado e viu o rádio-relógio. 'Duas e vinte e três e vinte e dois segundos, já é tarde' - pensou. Afinal, havia bebido tanto que quase já não tinha mais noção dos sentidos, e só havia olhado para o lado por ter se acostumado a fazer isso toda vez antes de dormir. E dormiu, claro. Começou a sonhar.
Apareceu no meio de várias crianças. Crianças pequenas, diga-se de passagem. Se bem que a face delas lhe era familiar... lembranças de sua infância. Olhou para si mesmo e viu-se há 60 anos atrás. Ele era ele, só que não ele no atual estado de ele. Ele era ele há 60 anos atrás, quando era nada mais do que um ser perdido no meio de outros. Olhou para os lados e localizou-se na velha escolinha, onde havia aprendido as primeiras palavras e passos. Naquele momento, estava fazendo o que mais gostava de fazer. Não por vontade própria, mas seguindo exatamente o que ele havia feito a exatos 60 anos atrás. Aquela, que era agora apenas uma lembrança vaga na sua memória, tinha voltado com todos os detalhes. Olhou para sua lancheira e comeu o sanduiche de pasta de amendoim, tomando no final o seu leite com achocolatado. Por fim, levantou-se, recolheu sua esteirinha e correu para a sala de aula. Abriu a porta e apareceu em outro mundo.
Agora, estava em casa. Mamãe brigava com papai, de uma forma que ele nunca desejaria ter visto - mas que ele tinha visto sim, há 55 anos atrás. Olhou para si, novamente, e viu-se com 10 anos, a fatídica idade com a qual ele viu a grande briga entre seus pais, que resultou na morte de seu pai - que morreu atropelado depois de ter tomado várias doses mais tarde, naquele dia. Com a consciência de 65 anos, mas seguindo passo-a-passo o que ele havia feito no passado, presenciava assim outro fato de sua vida. Após a briga, ele foi pro quarto, chorar. Ao abrir a porta, outro clarão de luz o pegou.
Foi parar na escola, com 15 anos. A palavra 'ficar' agora tinha outro sentido. Os amigos de colégio estavam mais crescidos, as garotas mais desenvolvidas, e cada vez mais ele tinha preocupações. Tinha que estudar muito, ler livros, sair com os amigos... passear, beber, paquerar... tempos bons que não voltavam mais. Era uma coisa que ele lembrava muito bem, os seus 15 anos, pois talvez aqueles eram os anos mais 'calmos' ou, pelo menos, despreocupados do resto da vida dele. Mas, como tudo que é bom acaba rápido, seu passeio com as garotas daquele tempo encerrou-se logo após abrir a porta da danceteria à qual ele se dirigia no momento.
Tudo na cabeça dele já fazia sentido. Era uma espécie de túnel do tempo, na qual toda vez que ele abria uma porta ele avançava no tempo - claro que num tempo que já passou, ou seja, a cada vez que ele encontrava uma porta no seu caminho ele se lembrava de um tempo após. Agora, com 22 anos, estava na faculdade. Toda a mordomia, sacanagem e divertimento parecia ter ficado para trás. Precisava estudar e, ao mesmo tempo, trabalhar para se sustentar e sustentar a mãe. Estava andando na rua em um dia de muito calor e, carregando diversos livros, seguiu andando até a faculdade, onde havia visto pela primeira vez aquela que seria sua mulher futuramente. Seguiu-a dentro da faculdade e... pulou para os 30 anos.
Os amigos do trabalho, a pelada no sábado de tarde, os problemas para conseguir dinheiro, contas pra pagar. Em compensação, as alegrias do primeiro carro quitado, a primeira casa própria, o primeiro filho... parecia que a vida começava de novo. Estava em casa, assistindo televisão. Havia acabado de almoçar, estava se preparando para tirar uma soneca. Apesar dos problemas, parecia que naquele momento nada poderia estragar sua vida. A não ser, talvez, uma reviravolta da feijoada. Fato pelo qual ele seguiu ao entrar no banheiro e seguiu sua viagem pelo tempo.
Enquanto isso ele foi chegando a várias conclusões consigo mesmo - pelo menos, a de que ele já havia passado por muitas coisas boas. Depois, começou a notar que, em cada momento de sua vida, ele era feliz e não sabia, pois sempre reclamava do momento atual e achava que aquele que havia passado era melhor. O futuro sempre tendia a piorar, e isso era um fato para ele - pelo menos até ter feito essa regressão. Também notou que quase sempre não havia aproveitado o momento, pois sempre estava preocupado com alguma coisa que sempre parecia mais importante do que o resto. Apesar de ter noção de que estava sonhando e de que, ao dormir, estava bêbado, aquele sonho era uma chance de mudança na vida dele. Se bem que, aos 65 anos, qualquer mudança era relativa. Mas, não importava - nunca é tarde para mudar.
Dos 30 anos para os 60 foi um passo rápido. Tudo era mais recente, eram lembranças claras em sua mente. Alguns fatos talvez o pertubassem, algumas coisas que haviam se perdido na sua mente, mas não tanto quanto as iniciais. Havia, finalmente, decidido que iria mudar. Talvez a atenção que ele nunca havia dado à sua mulher e filha poderia ser retribuída agora. Quem sabe, se preocupar menos com o que é desprezível. Ao adentrar a porta dos 65 anos, viu-se deitado, exatamente da mesma forma como havia deitado para este sonho. Olhou para o relógio e notou que, estranhamente, havia passado apenas um segundo desde quando havia dormido. E notou que, agora, estava voando - não era mais algum fato pelo qual havia passado. Não se movia, não se mexia, não fazia nada, apenas ficava olhando para si mesmo. Foi então que, levemente, ele começou a subir. Lentamente, mas subia e começava a ter uma visão de si mesmo. O relógio não andava, mas ali ele estava, cada vez mais longe de si mesmo. Quando caiu em si, viu que já era tarde demais para mudar - havia acabado de ver o filme de sua vida. E, agora desolado por não ter conseguido mudar, virou-se de costas para aquele que, até um segundo antes, era ele. Assim, seguiu rumo aos céus. A morte tinha chegado.

7:26 PM.

 

 

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